O papel da mediação patrimonial na salvaguarda do Património cultural

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O Património cultural é um instrumento de construção de cidadania, promotor da paz e do desenvolvimento de identidades. Reforça a coesão social por intermédio do fomento de acções de cooperação entre sectores de actividade e territórios, de preservação da memória histórica e dinamização de valores, orientadas para o bem comum e assentes numa conduta solidária e tolerante, das quais resultam relações recíprocas e duradouras. O Património cultural é o capital da identidade das nações.

Porém a sua dinâmica de transmissão e salvaguarda alterou-se em função da globalização, das novas prioridades económicas e da alienação resultante do progresso industrial e tecnológico. Com isto também se transformaram as noções de identidade e memória, nem sempre no sentido construtivo. É necessário reorientar os esforços e devolver às comunidades a sua herança cultural através de estratégias actualizadas e interdisciplinares de interpretação e mediação, responsáveis pela criação e manutenção de sistemas de relações (redes) que motivem e assegurem a sua transmissão. O presente texto reporta-se a uma das formas de comunicação do Património cultural.

Podemos definir “Mediação” como uma forma de comunicação, uma intervenção propositada de um agente entre dois pontos (Montepetit, 2011) a partir do qual se estabelece uma relação comunicacional pedagógica. Todavia, é uma definição insuficiente para lavrar o significado da ligação que se estabelece qualitativamente entre o mediador dos instrumentos do Património Cultural (seus campos de acção e modos de articulação) e o público. É preciso endereçar e conhecer os intervenientes.


Texto: Diana Carvalho – Mestre em História e Património , membro do Conselho Científico da Revista Herança, e colaboradora no Arquivo Distrital de Leiria (DGLAB).

( publicado em: Jornal da comunidade cientifica de língua portuguesa – A Pátria)


Património cultural | Conceito, objecto de trabalho e fonte de expectativas

Enquanto conceito, o Património cultural deve ser compreendido como abrangendo duas dimensões, contemplando de forma intrínseca e conciliatória as suas expressões materiais ou imateriais. Enquanto produto deve ser autenticado e respeitado na sua renovação e negociação intrínsecas, em todas as gerações. É sobretudo necessário apreendê‐lo como um processo composto por um conjunto de processos e por isso, não se pode definir e cristalizar num dado momento, pois o património cultural é uma construção social e cultural composta por produtos, práticas e significados ao longo de várias gerações, sendo a sua construção um processo activo e dinâmico no tempo e no espaço, dependente de acrescentos e novidades (VARINE, 2012).

É, portanto, uma condição, uma herança, material e imaterial, composta por um conjunto de referentes humanos de uma determinada sociedade ou comunidade (SMITH, 2006). Seja qual for o quadrante do Património e o seu domínio geográfico de gestão este não sobrevive ao tempo sem ser interpretado/descodificado e mediado.

Público. Primeiro é Receptor e, depois, Emissor

mediação patrimonial

Oficina de Arte Rupestre para crianças do ensino básico.

 

Em termos quantitativos o público é um conjunto de indivíduos ou de colectivos (grupos), de volume irregular, estanques ou em movimento, com posturas activas ou passivas. Qualitativamente é uma combinação de padrões comportamentais, moldados pelo seu ambiente sociocultural, económico e político, e com variadas expectativas sobre o objecto.

Apesar de num determinado momento esta mescla de singularidades se ter predisposto a comungar com uma nova experiência cultural, é fundamental que um estudo prévio acerca da sua conjuntura tenha produzido uma adequação das estratégias. Por exemplo, é preciso ter em conta as faixas etárias, as ligações familiares entre os indivíduos, o país de proveniência, possíveis dificuldades motoras ou de aprendizagem, agrupamento social a que pertencem, entre outras questões que contribuem para uma mediação produtiva no desenvolvimento de laços e competências.

Conceito de Património cultural

mediação de Património cultural

Atividade de caligrafia hebraica no mercado Koscher de Belmonte. Vila com forte tradição judaica e diversos vestígios de criptojudaismo.

 

William de Souza e Giulia Crippa (2011) em “O Património como Processo”, definem o conceito de Património através da sua etimologia:“(…) os vocábulos latinos pater e monium, formando patrimonium. Pater significa pai, não apenas no sentido da paternidade física, mas também social e religiosa, como algo que é transmitido e herdado dos antepassados. Já monium indica condição, estado, função. Deste modo, património se refere aos bens que são passados de geração em geração, sejam as riquezas herdadas como os saberes e costumes adquiridos. Apesar de estar relacionado com a ideia de propriedade, o patrimônio não se resume apenas ao que é material, mas a tudo aquilo que permaneceu ao longo do tempo entre os grupos e gerações.” (Souza, 2011: 249).

Outro autor, Guilherme Martins (2011), acrescenta o sentido da memória colectiva: “O património representa, de facto, sempre algo que corresponde à criação cultural que recebemos das gerações que nos antecederam. Daí que o conceito dinâmico de património obrigue a ligar o elemento criador da cultura à transmissão de uma herança que dá sentido à memória, como algo partilhado e vivido pela sociedade e pelos cidadãos”. (Martins 2011, 31).

Em suma, o Património cultural é, portanto, um conceito, um produto e um processo diferenciador de culturas e comunidades, uma extensão da identidade pessoal e coletiva, o capital da identidade das nações, resultando da vontade dos atores sociais (SMITH, 2006). Todas as decisões tomadas em prole da sua utilização são tomadas no presente, com intenções de curto e médio prazo. Este processo selectivo resulta numa forma de identidade, cada vez mais alargada com a chegada da Modernidade, associados a sentimentos nacionalistas – a forma das nações criarem meios de identificação com a população (SANTOS, 2002). Esses meios e estratégias de identificação serão sempre ideológicos e simbólicos e, por isso, sujeitos a transformações. Atrás desta concepção surgiram muitas tradições inventadas e outras re‐inventadas que serviram para colmatar as lacunas da rápida evolução tecnológica e urbana para com o lento desenrolar das identidades sociais do passado, mas também como defesa da sua herança (HOBSBAWM, 2002).

Os recursos ou instrumentos da mediação patrimonial podem ser materiais (objectos móveis, imóveis ou locais), imateriais (tradições, modos de vida, saberes, culturas vivas), e, no plano simbólico, o próprio conceito de património (ESPERANÇA, 1997).

O Mediador. O emissor

É o elemento de aproximação entre dois actores no terreno onde convergem. O seu papel é o de um comunicador pedagógico: cativar e manter a atenção do público, converter o contexto do objecto em informação acessível, definir regras e limites, escutar dúvidas, formular respostas, criar laços. Para ser bem sucedido deve possuir formação ao nível da comunicação, animação e interpretação, um perfil profissional adequado e encetar frequentemente estudos acerca do público (em virtude da sua mudança constante de interesses e tendências).

rota do românico

Visita guiada da Rota do Românico, Portugal

 

A tese de Ana Pagarim Nunes (2015), acerca da formação de profissionais nesta área, alerta-nos para a naturalidade das lacunas presentes no tema e no perfil profissional, pois trata-se de uma área em desenvolvimento. ““Animador, “monitor”, “guia de visitas”: tantos nomes diferentes para nomear aqueles que desempenham as mesmas funções. Isto acontece devido ao facto da área ser relativamente recente e apresentar lacunas estruturais, apesar da crescente solicitação dos seus serviços. Deparamo-nos agora com a fase da profissionalização do sector.” (Nunes 2015, 55). Na sua proposta para “Formação de Profissionais de Mediação e Educação”, Ana Pagarim Nunes lança as primeiras linhas orientadoras do perfil profissional do mediador, os requisitos da sua formação e as ferramentas pedagógicas de que deve dispor.

Actualmente podem encontra-se três tipos de mediadores humanos:

– aqueles das sociedades rurais. Agentes humanos tão intimamente associados à sua cultura e tradição que, espontaneamente e por processos orais, transmitem de geração em geração os assuntos e objectos considerados de valor, garantindo a sua sobrevivência, tendo por fiel depositário dos seus conhecimentos toda uma comunidade pertencente ao mesmo grupo cultural;

– os independentes ou empresas, muitas vezes não certificados para o efeito, que por motivos profissionais ou de necessidade se associaram a um determinado património e dependem das suas estratégias de mediação para sobreviver. O seu receptor é geralmente um conjunto heterogéneo de públicos desorganizados face ao objectivo da visita e com um aproveitamento deficitário da experiência;

– as instituições culturais, como os Museus, com uma função educacional reconhecida e aos quais se associa o conceito de mediação com maior intensidade. São espaços responsáveis pelo depósito de bens, colecções e objectos, e pela reflexão e produção de conhecimentos. Têm por missão transformar esse património e o espaço que este ocupa em circuitos de informação, prazer e desenvolvimento de competências, através de formas de comunicação concebidas especificamente para o efeito e planos estratégicos. A sua forma de gestão é responsável pela aproximação do público (através da capacidade dos seus meios técnicos e humanos) o que motiva o estudo de públicos para diagnosticar os seus contextos e adequar os seus métodos.

O mediador pode complementar os seus métodos recorrendo a várias estratégias de interpretação patrimonial nomeadamente jogos e apps digitais, actividades lúdicas, visitas guiadas, meios gráficos, etc.

Mediação Patrimonial. Interpretação, transmissão e mudança

A etimologia da palavra “Mediar” provém do latim “mediāre”, ou seja, cortar pelo meio; estar ao meio; intervir. Portanto, é uma ligação criada propositadamente entre dois pontos do qual resulta uma relação comunicacional. Mas, como se disse, é uma atitude depauperada assumir que mediar é um gesto unilateral, meramente informativo e com um significado tão limitado. A banal emissão e absorção de informação sem criar uma motivação no seu receptor tem um resultado descartável, ao contrário do que deve acontecer aqui. Esta deve ser promotora da aprendizagem e de processos de identificação lógicos e afectivos. Para tal recorre a estratégias de interpretação, comunicação e protecção do objecto que utiliza.

A interpretação é uma forma de conservação activa, é o suporte, a mediação é um conjunto de processos pedagógicos.

A interpretação é o momento de transformação e evolução, natural ou artificial, de um objeto ou evento cultural, no sentido das necessidades humanas ou pela lavra das instituições que tutelam o património cultural, num suporte, por vezes insuficiente para alcançar a compreensão dos públicos. Segundo a “European Association for Heritage Interpretation” os objetivos de uma interpretação patrimonial são a promoção de novos significados, o estímulo das emoções (que legitimam as experiências humanas) e da curiosidade, mas sobretudo, a de inspirar novas ideias/conceitos e até atitudes.

A interpretação patrimonial, quando positivamente conduzida pelos diversos intervenientes, num projeto bem delineado e planificado, submete‐se, inevitavelmente, ao serviço do desenvolvimento local, promovendo conhecimentos sobre a sua história, quer para visitantes  quer para as comunidades locais, aumentando as receitas provenientes do turismo cultural e, por fim, na melhoria da imagem local.

A  mediação, segundo Tilden, é uma tríade de processos: interpretação-compreensão; compreensão- apreciação; apreciação-proteção. Em termos práticos, esta tríade traduz o circuito produzido durante a mediação patrimonial: transmissão de informação específica acerca de um determinado elemento (ex. receita, moinho, paisagem) ou grupo (ex. rota), mobilizando conhecimentos e utilizando estratégias pedagógicas de interpretação e comunicação, conferindo-lhe toda a carga de um corpo próprio, devidamente contextualizado no espaço e no tempo, e enquadrado no conceito contemporâneo de Património cultural, integrando o público na experiência (desde o seu estudo prévio), e, por último, suscitando o interesse e a motivação para o divulgar, perpetuar e acrescentar.

Desta função pedagógica sucede o nascimento de uma nova dimensão simbólica no indivíduo e na esfera da sua colectividade causado pelo movimento de saberes. É neste pendular de papéis, aprendizagens e valores que reside a eficácia da mediação patrimonial, em detrimento de outras estratégias de comunicação e informação do património cultural.

Em suma, se no final do exercício de mediação o público se tornar emissor do resultado da sua aprendizagem para outros públicos, sem fronteiras, se o mediador tiver adquirido novos conhecimentos ou acrescentado novos valores à sua experiência ou formação que lhe confiram um maior alcance, então, o património mediado (ex. obra de arte, peça de teatro, monumento) cumpriu a sua função enquanto instrumento de humanização e desenvolvimento social.


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