A presença feminina no cante alentejano
O desafio que se propõe é intrigante e essencial: procurar o feminino no vasto património cultural.
Durante séculos, a história tem sido contada predominantemente através de uma lente masculina, relegando as contribuições das mulheres para segundo plano.
Eis aqui o desafio, olhar para o património cultural sob a perspetiva feminina, descobrindo pequenos tesouros.
Património Cultural
Elucidativamente é importante voltar às origens, a palavra património vem do latim patrimonium e aplicava-se aos bens que pertenciam a uma família e eram transmitidos aos sucessores. O patrimonium era o que se herdava, implicando, portanto, a ideia de herança.
O ser humano enquanto possuidor e produtor da cultura é inevitavelmente um herdeiro, e ao sermos herdeiros assumimos que o património cultural é a nossa herança cultural.
De modo muito simples, o património cultural é tudo aquilo que criamos, valorizamos e queremos preservar, por outras palavras é um conjunto de bens, tradições, manifestações ou cultos que têm um caráter histórico, monumental, simbólico, social, cultural e artístico.
O património cultural pertence ao povo e à região e confere-lhe um sentido de identidade.
No artigo de hoje vamos explorar a presença e contribuições das mulheres no contexto do Cante Alentejano em Portugal.
Qual a origem do Cante Alentejano ?
O Cante Alentejano , Património Mundial Imaterial da Humanidade da UNESCO, reconhecido em 2014, é um canto coral com duas vozes solistas que alternam com um coro, também participativo.
O cante surge em contextos informais, seja em trabalho, no campo ou em festas locais. É um relato cantado dos sentimentos e momentos do quotidiano.
Normalmente, é associado a classes mais rurais de uma região, cuja industrialização agrícola e extração mineira se desenvolveu a partiu do final do século XIX.
Estima-se que o primeiro grupo coral surgiu em 1926, associado aos trabalhadores das Minas de São Domingos, no Alentejo.
E a sua importância?
A importância do Cante alentejano representa um aspeto fundamental da vida social do povo alentejano. Transcende as fronteiras do tempo e do espaço, unindo as gerações, onde mais velhos e mais novo se encontram nos grupos corais.
É um testemunho vivo da criatividade e vivência alentejana, que conta nas letras das suas canções a história do Alentejo.
A presença das mulheres no Cante Alentejano
As mulheres sempre cantaram. Embora, o processo de institucionalização dos grupos corais masculinos como representação da cultura alentejana tenha marginalizado as mulheres da prática formal do Cante, nunca as impediu de cantar.
Nas fileiras do Cante é predominante a figura masculina, deixando a presença da mulher apenas referenciada na informalidade.
A ausência feminina também se vê na ideologia vivida pelo regime ditatorial português do século XX, onde a mulher estava confinada ao lar. Os homens movimentavam-se no exterior, enquanto a mulher permanecia em casa entre os afazeres domésticos e educação dos filhos.
O primeiro grupo coral formal feminino, apenas surgiu em 1979. As mulheres tinham conquistado o seu espaço no lugar público. O que se coloca em questão é a liberdade de movimentos das mulheres, que chegou a ser muito contestada pelos homens.
A formalização do Cante feminino provou que as mulheres, assim como os homens, têm de ser livres.
Impacto do papel feminino no Cante Alentejano
O Cante Alentejano tem assistido ao longo dos anos uma evolução significativa no que diz respeito à participação das mulheres. Enquanto inicialmente era predominantemente uma prática masculina, a entrada das mulheres nesta arte não só expandiu o alcance e a vitalidade do Cante, mas também redefiniu as normas e limites da prática musical formal.
A proliferação de grupos corais femininos reflete não apenas uma procura por um espaço alternativo pelas mulheres, mas também uma reestruturação da própria prática do Cante. A inclusão das mulheres levou a uma revitalização de peças tradicionais e tradições locais que estavam em risco de serem esquecidas.
Um aspeto crucial da contribuição feminina para o Cante foi a introdução de novas formas de cantar e interpretar as modas tradicionais.
Enquanto os grupos corais masculinos muitas vezes se restringem a um reportório tradicional, as mulheres trazem uma abordagem mais dinâmica e inclusiva, incorporando modas esquecidas e outras atividades locais como os mastros, o canto das almas, as comadres, as modas dançadas, as janeiras ou até o Carnaval.
O papel feminino no Cante Alentejano é, sem dúvida, uma mudança essencial que obrigada o coletivo alentejano a repensar no seu património e valorização.
Fonte: C.M. Serpa
Grupos mistos: desafio?
A criação de grupos mistos representa um novo capítulo da evolução do Cante Alentejano .
Embora, inicialmente, possa ter havido resistência à ideia de combinar vozes masculinas e femininas, os grupos mistos surgiram como uma resposta à necessidade de preservar e transmitir a tradição para as gerações futuras.
Esta fusão de grupos não só fortalece a comunidade, mas também oferece novas oportunidades para a colaboração e inovação.
Porventura, nos grupos mistos e perante as combinações de vozes, as diferenças de altura e timbre, implica, por vezes, a perda do estatuto de solista para mulher, onde o homem assume o papel de voz alta, com a mulher em segunda plano, no coro.
Em última análise, a presença e contribuição das mulheres no Cante Alentejano não só enriquece a prática musical, mas também reforça o seu papel como um património cultural partilhado por toda a comunidade.
Homens e mulheres cantam lado a lado, reconhecendo-se, então, a importância de preservar e celebrar uma tradição que é verdadeiramente comum a todos.
Algumas sugestões
Sugestão de leitura:
Cabeça, S. M., & Santos, J. R. (2010). As Mulheres no Cante Alentejano.
Vídeos:
Grupo Coral Feminino “Vozes de Barrancos”: https://www.youtube.com/watch?v=UhGs6kjOqeU&ab_channel=DulceSim%C3%B5es
Grupo Coral Feminino “Flores do Chança: https://www.youtube.com/watch?v=a8pNqQtOrfM&ab_channel=DulceSim%C3%B5es
Imagem de capa: https://travelsafaris.pt/ferreira-do-alentejo/
Vanessa Miranda
Contar e escrever histórias, é assim que me lembro de ser desde sempre. Sou licenciada em Gestão de Atividades Turísticas e Mestre em Património Cultural. Esta paixão levou-me a criar uma pequena empresa de atividades turísticas cuidadosamente planeadas, centradas na história de Lisboa e na história, muitas vezes esquecidas e subestimadas, das mulheres.
Além de percursos a pé pela cidade, atuo como consultora na produção de conteúdos no desenvolvimento e produção de conteúdos de roteiros turísticos para a app Walkbox. Escrevo artigos de opinião para um jornal na Madeira e outro em Barcelos. Movida por valores, sou voluntária numa associação onde assumo o papel de criadora e gestora de conteúdos.