Abigail de Andrade é uma das artistas que fez da arte sua profissão num tempo em que as mulheres faziam dela apenas uma distração.
Conheça esta artista no artigo de Rute Ferreira, autora do curso História da arte no Brasil.
Quem foi Abigail de Andrade?
Abigail de Andrade, Sem Título, 1881, Coleção Particular.
A produção feminina no Brasil do século XIX é notável, embora seja pouco documentada. Não faltaram mulheres na arte nessa época, mas sua presença na memória e nos livros de arte ainda é escassa.
Estudos recentes têm se concentrado em produções femininas do período e artistas como Abigail de Andrade (1864-1890) começam a ter a visibilidade merecida – pelo menos em alguns meios acadêmicos. Mas já é um começo.
Abigail de Andrade é uma das artistas que fez da arte sua profissão num tempo em que as mulheres faziam dela apenas uma distração. No Brasil do século XIX a arte como ofício era uma atividade masculina (como a maior parte das coisas, aliás). Abigail foi de encontro a essa rotina vigente e se transformou, de fato, numa pintora de ofício.
Mas quem foi essa mulher e por que sua produção, há tanto esquecida, é tão importante para compreendermos a arte e a condição feminina do século XIX?
Abigail de Andrade nasceu no pequeno município de Vassouras, no Rio de Janeiro, em 1864. Alguns anos antes de seu nascimento um feito inédito – e uma conquista parcial – acontecia há alguns quilômetros dali: a Academia Imperial de Belas Artes, fundada no Rio de Janeiro por D. João VI, passou a aceitar trabalhos produzidos por mulheres a partir de 1840. Elas também tinham agora o direito de participar dos concursos promovidos pela Academia nos seus Salões. Entretanto, nenhuma mulher ganhou o prêmio principal, a medalha de ouro. Pelo menos não até 1884, quando uma jovem pintora de apenas vinte anos de idade encantou crítica e público com suas obras.
Era Abigail de Andrade, a primeira mulher a receber o principal prêmio no Salão da Academia Imperial de Belas Artes.
Abigail de Andrade, Mulher Sentada em Frente a Escrivaninha, 1890, Coleção Particular.
Os autorretratos
A produção de Abigail é marcada por uma característica incomum: a produção de autorretratos.
Na época, era comum que mulheres pintassem motivos florais e naturezas mortas, por isso a contribuição da artista é tão importante, para começar. Ela estava caminhando por um terreno masculino não apenas no ofício, mas também no tema.
A pintora começou a estudar arte no chamado Liceu de Artes e Ofícios, que era uma alternativa à Academia, uma instituição voltada para o público feminino.
Uma particularidade de Abigail em relação aos autorretratos: sem a possibilidade de estudar na Academia e ter uma educação formal, ela não tinha chances de praticar com o modelo vivo, portanto usava a si mesma como modelo. Mas ela não simplesmente se representava. Ela representava a mulher diante do ofício de ser artista. Considerada uma mulher muito bonita, Abigail quase não evidenciava a própria beleza em suas obras, como principal característica.
No quadro Sem Título, de 1881, Abigail se representa como pintora, de fato. Seus instrumentos estão diante dela e ela está de perfil. O cenário é simples, ocupado por algumas flores que provavelmente são o motivo de sua pintura.
No quadro Mulher Sentada em Frente a Escrivaninha, produzido quase uma década depois, vemos uma Abigail mais madura como artista. Sua técnica parece mais refinada, e ao mesmo tempo ela parece não se ater mais às preocupações estéticas evidentes na pintura anterior. A mulher está sentada, e diante de si tem livros e papeis. Provavelmente ela escreve e mantem a mão no rosto, olhando fixamente através da janela. Ela parece perdida em pensamentos. A representação nessa pintura remete a uma mulher intelectual, uma pensadora.
Mas é na obra Um Canto de Meu Ateliê, produzido entre os dois anteriores, em 1884, que Abigail realmente mostra a pintora que é com detalhes específicos que merecem um pouco mais de nossa atenção.
Abigail de Andrade, Um Canto de Meu Ateliê, 1884, Coleção Particular.
A primeira característica marcante nessa obra é que Abigail representa a artista (ou seja, ela mesma), de costas. Sua ideia não é chamar atenção para si mesma, mas sim para o seu ateliê – seu local de trabalho. E que local de trabalho interessante ela apresenta – outra característica interessante a se mencionar: diante de si, a pintora tem sua tela e cavalete. Há reproduções de esculturas gregas e romanas nas prateleiras nas paredes, anjinhos pré-rafaelitas, flores e reproduções de mestres renascentistas.
A disposição das coisas no ateliê sugere uma artista profissional que se ocupa de estudar e aperfeiçoar sua própria técnica e que para isso utiliza referências de todos os tipos.
A pessoa apoiada contra a janela é a tia da artista, que olha diretamente para ela e seu trabalho. A falta de figuras masculinas na cena seria proposital? Ao escolher representar a tia, e não o marido – que também era um artista – a pintora teria feito uma escolha consciente? Quanto a isso, infelizmente, ficaremos sem resposta, mas podemos especular.
O mais interessante é que nessa obra Abigail não se coloca como uma mera musa. Ela é tão somente o sujeito de sua pintura.
Uma carreira curta mas intensa
Abigail também se ocupou de outros gêneros de pintura. Ao longo de uma curta carreira, produziu cenas de gênero, situações cotidianas, naturezas mortas, entre outros. Ela parecia testar todas as possibilidades. Infelizmente, a vida pessoal da artista era complicada. Abigail se envolveu num romance com o seu professor, o artista italiano Angelo Agostini, que ela conheceu no Liceu. O romance não seria um grande problema se não fosse o fato do professor ser casado. Agostini, que editava a Revista Ilustrada, estava completamente apaixonado pela jovem e juntos os dois pintaram algumas obras em que representam um ao outro.
Em sua própria época, foi notado o fato de Abigail ter feito da pintura sua profissão. Ela não foi vista pela crítica como amadora, mas desafiando o preconceito do período, conseguiu se firmar como uma artista. Não totalmente, é claro. Apesar de toda a qualidade de seu trabalho, ainda era um mundo de homens, afinal. E nesse mundo de homens, as hierarquias ainda tornavam difícil que uma mulher se realizasse plenamente como artista. Além disso, o relacionamento dela com Agostini também serviu para ofuscar sua obra e para afastar a jovem de mais contatos com aqueles que também faziam arte em sua época.
Em 1888, Abigail se mudou com Agostini para Paris, que naquele momento vivia intensamente o movimento impressionista. Ali, ela continuou pintando e fazendo estudos. Dois anos depois, ela seria acometida de uma grave tuberculose, que seria a causa de sua morte com apenas 26 anos de idade. Abigail de Andrade teve uma carreira curta, mas uma produção marcante.