Leal da Câmara – Conheça a vida atribulada de um artista genial, irreverente e insubmisso!

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Conheça a vida atribulada de Leal da Câmara – um artista genial, dotado de um carácter contestatário, irreverente e insubmisso que nos deixou uma obra inigualável!

 

Júlio Leal da Câmara

Tomás Júlio Leal da Câmara foi um excelente pintor, ilustrador, jornalista e caricaturista português que ainda é, infelizmente, bastante ignorado pelo povo português. Nasceu em Panguim, na antiga Índia portuguesa, em 1876, e faleceu na Rinchoa, em Rio de Mouro, região de Sintra, em 1948.

Filho de um militar, veio viver para Lisboa com seis anos. Após uma breve passagem pelo Curso Superior de Veterinária, em 1896, despertou para a vida artística frequentando o meio boémio lisboeta.

 

 

Um caricaturista genial

Republicano e nacionalista convicto, firme opositor da subordinação dos interesses portugueses ao imperialismo inglês, Leal da Câmara colaborou como caricaturista com diversos periódicos como O Inferno – Jornal de Arte e Crítica – do qual foi diretor artístico – A Marselhesa, A Corja ou O Diabo.

Nas suas obras criticou ferozmente a incompetência e a corrupção dos dirigentes monárquicos e partidários que governavam o país e, em particular, a atitude passiva e complacente do rei D. Carlos I (1863-1908), o qual foi alvo de pelo menos 105 caricaturas ridicularizantes.

 

Leal da Câmara O Chefe de Estado em Portugal, aguarela, 1897.

Leal da Câmara O Chefe de Estado em Portugal, aguarela, 1897.

 

As caricaturas de D. Carlos I

A atuação do rei D. Carlos I – visto como um diletante que se dedicava a esbanjar a riqueza nacional e que encabeçava um regime monárquico caquético e ineficaz – era alvo de chacota por parte da imprensa e de inúmeros caricaturistas portugueses. Apesar de ter retratado D. Carlos dançando efusivamente enquanto por detrás dele um mendigo esfarrapado e um camponês com a enxada ao ombro lutavam por sobreviver, Leal da Câmara – tal como muitos outros republicanos – não deixou nunca de admirar as capacidades artísticas do rei ou os seus profundos conhecimentos oceanográficos.

Um ano depois, em 1898, na capa do periódico “A Corja” – fundado por si e pelo jornalista António Gomes Leal (1848-1921) – o artista voltou à carga e retratou o então primeiro-ministro português, José Luciano de Castro (1834-1914), a engraxar as botas do “bacôco” ou “pacóvio” D. Carlos I, representado como um gordo anafado e vestido com um uniforme de campo.

Recorde-se que o rei D. Carlos I visitava com frequência o Palácio ducal de Vila Viçosa – uma vila situada na sua região preferida, o Alentejo – onde, desde o final do reinado do seu pai, o rei D. Luís I (1861-1889), se dedicava a gerir as propriedades fundiárias da família real.

 

Leal da Câmara O Bacôco, revista “A Corja!”, 1898.

Leal da Câmara O Bacôco, revista “A Corja!”, 1898.

 

As caricaturas da igreja católica

A Igreja Católica também não escapava às críticas contundentes de Leal da Câmara, como se pode observar na seguinte caricatura onde o Clero português surge dando a mão esquerda ao Zé Povinho – o icónico símbolo do povo português criado, em 1875, por Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905) – enquanto com a outra segura facilmente uma pequena Coroa, o símbolo de uma instituição monárquica impotente e submetida aos ditames clericais.

 

 

As caricaturas de D. Manuel II

Nem sequer o brevíssimo reinado de D. Manuel II (1908-1910), o último rei português, escapou à censura de Leal da Câmara como se pode constatar no quadro em baixo exposto onde o artista retratou Gaby Deslys (1881-1920) – uma cantora brilhante, corista de cabaret e atriz muito bem-sucedida e uma das mulheres mais bonitas da Europa de então – com quem o rei português manteve uma relação amorosa e a quem ofereceu várias joias e presentes caríssimos.

Gaby Deslys – que aqui aparece segurando o cetro e a coroa do rei de Portugal – terá sido também amante de diversos outros empresários, políticos, milionários e monarcas europeus. Esta relação amorosa escandalosa – segundo a mentalidade da época – acabou por contribuir para abalar profundamente a imagem do monarca.

 

Leal da Câmara A “Dança do Urso”, por Gaby Deslys, pastel e lápis.

A “Dança do Urso”, por Gaby Deslys, pastel e lápis.

 

Os anos no exílio

Perseguido pelas suas críticas à Igreja Católica e impedido legalmente de caricaturar a família real – após decisão tomada pelo Juiz de Instrução Criminal, Francisco Maria da Veiga (1852-1934) – Leal da Câmara fugiu para Madrid, em 1898, com o apoio de cúmplices republicanos.

Em Espanha, Leal da Câmara encontrou outro regime monárquico velho e decadente, idêntico ao português, e não resistiu em retratar impiedosamente a então regente de Espanha, Maria Cristina de Habsburgo-Lorena (1858-1929), a rainha-viúva do rei Afonso XII (1857-1885).

 

A Rainha Cristina de Espanha (Maria Cristina de Áustria), Madrid.

A Rainha Cristina de Espanha (Maria Cristina de Áustria), Madrid.

 

No entanto, durante os dois anos em que viveu em Espanha, Leal da Câmara teve a possibilidade de conhecer novos ambientes e culturas e foi influenciado por outras correntes artísticas. As caricaturas que realizou para diversos periódicos espanhóis foram novamente alvo de censura, agora por parte das autoridades espanholas, o que obrigou Leal da Câmara a regressar a Portugal, logo após a instauração da Primeira República, em 1910.

A sua estadia em Portugal foi muito curta, pois, o artista rapidamente se desiludiu com o novo regime republicano. De espírito constantemente irrequieto, Leal da Câmara partiu para Paris e somente regressou a Portugal definitivamente em 1915.

 

Leal da Câmara República

República

 

Paris, 1900

Em 1900, Paris era o centro do mundo educado e civilizado, uma metrópole europeia cosmopolita, anfitriã da Grande Exposição Universal e que era o oposto da velha cidade de Lisboa, provinciana e patriarcal.

Na cidade parisiense, Leal da Câmara conviveu com vários artistas e intelectuais estrangeiros e portugueses, colaborou com diversos periódicos espanhóis, belgas, ingleses e franceses, realizando várias caricaturas para a revista L’Assiette au Beurre.

 

Cancan no “Folies”, óleo sobre madeira.

 

Montou o seu atelier em Montmartre e viveu anos de glória conseguindo destacar-se pelo seu mérito e pelas suas capacidades artísticas, entre muitos outros caricaturistas talentosos. Conviveu e foi influenciado por artistas brilhantes, como Henri de Toulouse-Lautrec (1864-1901), tal como se pode observar na pintura atrás exposta que retrata claramente o ambiente de cabaret frequentado por Leal da Câmara.

Em Paris, sempre atento ao mundo que o rodeava, Leal da Câmara registou os avanços registados na aviação civil ao caricaturar ironicamente o famoso aviador francês, Henri Farman (1874-1958), responsável na época por quebrar vários recordes de voo.

 

 

A Primeira Guerra Mundial: o regresso definitivo a Portugal

O início da Primeira Guerra Mundial, em 1914, obrigou Leal da Câmara a regressar a Portugal. Instalou-se no Porto, em 1915, onde trabalhou como professor no curso de Desenho Industrial nas Escolas Infante D. Henrique e Faria de Guimarães.

 

A Declaração de Guerra da Áustria a Portugal, revista “Miau!”, 1916.

 

Além disso, Leal continuou com a sua brilhante carreira artística colaborando com a revista satírica “Miau!”, para a qual caricaturou as principais figuras responsáveis por este sangrento e terrível conflito bélico, como o Imperador austríaco, Francisco José (1830-1916), ou o Imperador alemão, Guilherme II (1859-1941).

 

Doença passageira, revista “Miau!”, 1916.

 

O mundo saloio

Em 1920, casou com Júlia da Conceição Azevedo e mudou-se para Lisboa onde continuou a sua atividade de docente na Escola de Fonseca Benevides. Decorridos 10 anos, e cansados de viver na atribulada capital, Leal da Câmara e a mulher decidiram ir viver para a propriedade que detinham na Rinchoa, um lugar simples, rústico e muito sossegado, situado no concelho de Sintra.

 

Senhor Agostinho, 1947-48

 

Aí, Leal dedicou-se a retratar a vida quotidiana e os costumes da população rural saloia, realizando dezenas de desenhos a lápis, a aguarela ou a tinta-da-china onde registou – sem qualquer tom depreciativo ou desrespeitoso – momentos de convívio, de descanso, de trabalho ou mesmo de namoro, contribuindo assim para reabilitar socialmente a figura do saloio.

 

O Muro do Derrête, aguarela.

 

Faleceu em 1948, na sua casa na Rinchoa – que hoje é a Casa-Museu Leal da Câmara – dois anos após se ter reformado do cargo de professor, em 1946, por ter atingido o limite de idade.

Depois de uma vida atribulada, marcada por um exílio de 11 anos devido à repressão que foi alvo por parte das autoridades políticas e religiosas portuguesas, as críticas deste humanista de humor incisivo e de espírito arguto mantêm-se infelizmente muito atuais e não podem por isso mesmo ser esquecidas!

 

Feira de São Pedro de Penaferrim.

Nuno Alegria

Nuno Alegria

Licenciado em História pela Faculdade de Letras de Lisboa, pós-graduado em História Contemporânea pela Faculdade de Letras de Coimbra e em Tour Guiding pelo Instituto de Novas Profissões (INP). Guia-Intérprete oficial, fluente em inglês, francês e espanhol, trabalha para a Parques de Sintra e para diversas agências de viagens realizando circuitos turísticos culturais por museus e monumentos de todo o país.

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