Processos da Inquisição Portuguesa
Entre linhagens suspeitas e memórias silenciadas: percursos familiares nos arquivos do Santo Ofício.
Um ensaio de Diana Carvalho, autora do curso Genealogia em Portugal - Fundamentos
A genealogia, entendida como o estudo das origens e das redes de filiação, também se cruza intimamente com os processos da Inquisição portuguesa pois ambos operam sobre a memória e a identidade — um para as reconstruir, o outro para as apagar ou “purificar”.
Este ensaio propõe uma reflexão sobre o modo como a Inquisição Portuguesa construiu genealogias da suspeita e como, hoje, a investigação histórica e genealógica pode restituir voz e dignidade a essas memórias silenciadas. Procura erguer o véu do tabu, e dar voz a todas as formas de espiritualidade, num espírito democrático e respeitoso.
A Genealogia da Heresia e Bruxaria nos Processos da Inquisição Portuguesa
A Genealogia como instrumento de exclusão
Nos autos inquisitoriais, a genealogia surge não apenas como instrumento de investigação da linhagem “cristã-velha” ou “cristã-nova”, mas também como mecanismo de exclusão social, onde o sangue e a ascendência se tornavam critérios de pureza moral e religiosa.
Assim, a Inquisição portuguesa apropriou-se da genealogia como tecnologia de poder: um dispositivo de legitimação que, sob o pretexto da fé, classificava, hierarquizava e condenava, convertendo a história familiar em campo de vigilância e de culpa hereditária.
 
Pendão da Inquisição Portuguesa – Museu de Évora – Reservas (Fonte: Rede Portuguesa de Museus)
Os perseguidos pela Inquisição Portuguesa
Judeus e cristãos-novos
Nas Listas ou “Notícias” das Inquisições do Tribunal do Santo Ofício, cada linha é o destino de uma vida resumida a poucas palavras. Por trás das fórmulas jurídicas de sentenciamento escondem-se medos, arrependimentos e penitências que marcaram séculos de perseguição, opressão e crimes contra a humanidade.
Entre os diversos tribunais existentes (Évora, Coimbra, Lisboa, Porto, etc.), entre 60 a 90% dos julgamentos reportam-se à prática de judaísmo.
 
Gravura Palácio da Inquisiçao em 1816 (Gabinete de Estudos Olissiponenses)
Hereges Bruxos e Feiticeiros
Contudo, a Inquisição portuguesa não se dedicou apenas à perseguição dos cristãos-novos (judeus convertidos pela força), mas também exerceu a sua vigilância sobre práticas consideradas heréticas, como a bruxaria, feitiçaria ou a superstição.
As acusações recaem tanto sobre mulheres como homens, configurando-se assim como instrumento de controle social, religioso e moral.
Os Processos do Santo Ofício
Através da leitura dos processos do Santo Ofício — Inquisição portuguesa — é possível identificar padrões associados a práticas consideradas heréticas ou mágicas, revelando a dimensão genealógica do medo e da exclusão.
Ana do Sacramento
1805 – Olhão, Algarve
“(…) prática de rezas e bençãos, e com presunção de ter pacto com o demónio (…)”.
Crime/Acusação: bruxaria, feitiçaria e superstição
Cargos, funções, actividades: apanhar trapos pela rua
Naturalidade: freguesia de Nossa Senhora do Rosário de Olhão
Morada: Rua da Achada, a São Cristóvão, Lisboa
Estado civil: casada
Cônjuge: Vicente Lopes
Sentença: na Mesa em 27/10/1803. A ré foi repreendida.”
Pedro Homem
1590 – Morador em Paio Pires, Almada, Natural da Serra da Estrela
“(…) faz mil adivinhações, na dita terra, levando por isso dinheiro e com um tacho de água que põe diante de si, advinha tudo dizendo às mulheres os sinais (…). E adivinhando coisas futuras subindo por uma escada de 18 degraus sem a encostar a nenhuma coisa (…) e faz outras coisas que parecem ser feitas por arte diabólica (…)“.
“Outras formas do nome: Gaspar de Figueiredo ou Gaspar Correa
Estatuto social: cristão-velho
Crime/Acusação: bruxaria
Cargos, funções, actividades: moleiro dos frades de Belém
Naturalidade: Serra da Estrela
Morada: Paio Pires, Almada
Data da prisão: 20/10/1590
O processo foi arquivado por falta de provas.”
Luís de La Penha
1618-1626 – Évora
“(…) de 12 anos a esta parte, curava por arte do demónio e benzia os enfermos dizendo orações e palavras em voz baixa de modo que se não podiam ouvir, e tinha um livro de quiromancia pelo qual via a mão a muitas pessoas dizia ou adivinhava coisas que estavam por vir, e não podiam ser sabidas se não pela mesma arte do demónio, como foram as mortes de algumas pessoas e perigos que a outras haviam de acontecer (…)”.
“Estatuto social: parte de mourisco
Crime/Acusação: bruxaria e feitiçaria
Morada: Évora
Em 1619 e em 1626, o réu foi sentenciado pela Inquisição de Évora.
Contém cópias do “Assento do 2º lapso de Luis de la Penha” e da “Sentença da relapsia”.”
Jacinto
1792 – Natural de Sabará, Brasil
“(…) denunciaram-me um mulato cativo por nome Jacinto, escravo do capitão Pedro Lopes Machado, por fazer cartas de botar, e nelas entregavam todas as suas potencias o demónio, e adoraria por seu Deus, e todos os seus sequazes, como (…) nas ditas cartas, que se comunham nelas várias heresias impróprias que trazia o dito consigo, tinham pinturas do demónio (…)“.
“Estatuto social: homem pardo escravo
Crime/Acusação: bruxaria e feitiçaria
Naturalidade: Sabará, Brasil
Morada: Sabará, Brasil
O réu era escravo do capitão Pedro Lopes Machado.”
Matias Dias
1702 – Soure, Coimbra
“(…) feiticeiro e curador curando de várias enfermidades assim à gente que para isso o procura, como também a todo o género de animais, rezando nas ditas curas de bençãos e cerimónias supersticiosas (…) por arte diabólica (…)”.
“Estatuto social: [cristão-velho]
Crime/Acusação: bruxaria e feitiçaria
Cargos, funções, actividades: curandeiro, benzedor
Morada: Bonitos, freguesia de Soure, bispado de Coimbra”
Joana Antónia
1749 – Escrava de origem angolana – Lisboa
“(…) lhe apareceu o mesmo demónio muitas vezes, umas em figura de homem outras em figura de cão e gato (…) e que lhe deu ela voluntariamente o seu sangue que tirou do braço esquerdo (…)”.
“Estatuto social: escrava de António dos Santos Leitão, latoeiro
Idade: 16 anos
Crime/Acusação: bruxaria e feitiçaria
Naturalidade: Angola
Morada: Lisboa
Estado civil: solteira
Data da apresentação: 29/03/1749
Sentença: auto-da-fé privado de 19/04/1749. Abjuração em forma, instrução na fé católica, penitências espirituais.”
António Pedro Caquande [ou Caquanda]
1772 – “Preto livre”
“António Pedro de apelido Caquande morador no Dongo, distrito desta Jurisdição, voluntariamente, sem temor divino, nem humano, tem enfeitiçado e morto muitta gente do povo do dito Dongo, com mágica, envenenando os poços de água em que as criaturas bebem”
“Outras formas do nome: António de Francisco, apelido: “Caquande”
Estatuto social: preto
Crime/Acusação: bruxaria
Morada: Dongo, Angola
Contém a guia de remessa do réu, e de um maço de papeis, para o Tribunal do Santo Ofício.”
Padre Manuel de Almeida Monteiro
1795 – Lisboa
Denúncias e acusações apresentadas por várias pessoas, acusado de bruxaria e feitiçaria, foi sacerdote do hábito de São Pedro.
Em conclusão
Os processos da Inquisição portuguesa aqui apresentados revelam a complexidade e amplitude social daquilo que poderíamos chamar de “genealogia da heresia e da bruxaria” em Portugal e nos territórios sob influência do Santo Ofício.
A Inquisição portuguesa não apenas julgou práticas religiosas ou mágicas consideradas desviantes, mas também mapeou identidades e linhagens sociais, inscrevendo nos registos do tribunal a própria cartografia da diferença e do medo.
Estes casos demonstram que a bruxaria não era um crime exclusivo das margens sociais, mas uma categoria mutável, usada para vigiar curandeiros, escravizados, mulheres pobres, e até clérigos. A genealogia da heresia atravessava fronteiras de classe, cor e território refletindo uma rede de controle que combinava superstição, fé popular e repressão institucional.
Os processos mostram ainda que a suspeita tinha memória: a condição de escravo, de mourisco, de mulher, ou mesmo de simples benzedor podia reativar velhos estigmas, herdados e perpetuados como verdade genealógica.
Fontes & Bibliografia
Arquivo Nacional da Torre do Tombo. (n.d.). Fundo Tribunal do Santo Ofício (PT/TT/TSO). Digitarq. https://digitarq.arquivos.pt/documentDetails/25da8b00645545f38dc05c5353f282d0
Arquivo Nacional da Torre do Tombo. (n.d.). Processo de Joana Antónia (PT/TT/TSO-IL/028/00348) [Transcrição de Diana Carvalho]. Digitarq. https://digitarq.arquivos.pt/documentDetails/8fc1f78aad7d4613aabfb4ad13344483
Arquivo Nacional da Torre do Tombo. (n.d.). Processo de Matias Dias (PT/TT/TSO-IC/025/00953) [Transcrição de Diana Carvalho]. Digitarq. https://digitarq.arquivos.pt/documentDetails/f8ed91c301b04921aabce0f8ac6eedd6
Arquivo Nacional da Torre do Tombo. (n.d.). Processo de Ana do Sacramento (PT/TT/TSO-IL/028/10086) [Transcrição de Diana Carvalho]. Digitarq. https://digitarq.arquivos.pt/documentDetails/bb51f14e03e74c9984bb853e29314211
Arquivo Nacional da Torre do Tombo. (n.d.). Denúncias contra o padre Manuel de Almeida Monteiro (PT/TT/TSO-IL/028/CX1577/13652) [Transcrição de Diana Carvalho]. Digitarq. https://digitarq.arquivos.pt/documentDetails/496dd8b535274c459d464f28b47c8d0c
Arquivo Nacional da Torre do Tombo. (n.d.). Processo de Jacinto (PT/TT/TSO-IL/028/05630). Digitarq. https://digitarq.arquivos.pt/documentDetails/20faea440b1a4cceaeab1058b6c88cfa
Arquivo Nacional da Torre do Tombo. (n.d.). Processo de Luís de La Penha (PT/TT/TSO-IL/028/CX1579/13806). Digitarq. https://digitarq.arquivos.pt/documentDetails/73535bce5f02408792544835ba54a9fa
Arquivo Nacional da Torre do Tombo. (n.d.). Processo de António Pedro Caquanda (PT/TT/TSO-IL/028/02475). Digitarq. https://digitarq.arquivos.pt/documentDetails/08e237080d7e4f038cdcdc561b3d314d
Arquivo Nacional da Torre do Tombo. (n.d.). Processo de Pedro Homem (PT/TT/TSO-IL/028/00051). Digitarq. https://digitarq.arquivos.pt/documentDetails/7270403399e046f0baf53399e71b5b7a

