Autora: Manuela Tenreiro
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Introdução
Robert Farris Thompson
Flash of the Spirit: African and Afro-American Art & Philosophy
(First Vintage Books Random House, 1984)
A importância das culturas da Diáspora Africana levou as Nações Unidas a declarar a Década Internacional para os Afrodescendentes entre 2015-2024. É um reconhecimento que tardava, consequência de processos sociais que por demasiado tempo vêm ofuscando e invisibilizando o legado daquela que foi a maior migração forçada na história da humanidade. No entanto, hoje, na nossa cultura contemporânea global, o legado construído pelas comunidades negras no continente americano permeia tudo, da música e dança, ao cinema, à literatura, à arte, à moda.
Entre os séculos XV e XIX, durante quase 400 anos, cerca de 12.5 milhões de africanos foram levados à força para o continente americano, arrancados das suas terras e às suas famílias, depositados em territórios desconhecidos e hostis, e sujeitos a um sistema escravocrata comandado pelas potências ocidentais europeias. Uma forma de escravidão sem precedentes, o tráfico transatlântico pode ser dividido em três fases: dos séculos XV e XVI quando esteve nas mãos de portugueses e espanhóis; nos séculos XVII e XVIII quando Holanda, França e Inglaterra principalmente (mas também Alemanha, Dinamarca e outros) consolidam o seu poderio naval na costa Africana e no comércio de escravos; e, finalmente, uma terceira fase no século XIX após a abolição do tráfico, quando este passa a ocorrer clandestinamente, sendo até praticada por novas nações independentes como foi o caso do Brasil.
Sendo a mão-de-obra cativa na esmagadora maioria de origem africana, rapidamente a cor de pele negra passaria a estar associada à função de escravo, transformando assim os africanos no que em Estudos Culturais se chama de sujeitos racializados. Consequentemente, as culturas materiais provenientes de África, seus rituais, objetos e crenças foram sistematicamente depreciadas, cabendo, a partir de meados do século XX a arqueólogos, etnógrafos, historiadores e outros pesquisadores resgatar para a academia esse imenso e riquíssimo património que emergiu a partir da resistência dos africanos e seus descendentes.
Lançado recentemente, o projeto https://www.slavevoyages.org/ reúne toda a informação resgatada de arquivos e relativa às viagens transatlânticas e interamericanas de navios negreiros. Os números das bases de dados disponibilizadas para download são avassaladores. Já os mapas interativos mostram claramente a intensificação das travessias com pico no século XVIII, no auge da produção de ouro e diamantes no Brasil e quando a industrialização já havia transformado a Inglaterra na principal potência europeia. Deste minucioso trabalho de pesquisa histórica emergem aspetos importantes para o tema de que trata este curso. Em primeiro lugar, a magnitude da migração constante e crescente de Africanos, não só levados da África para as Américas, mas também circulados entre os portos do continente americano ou das ilhas caribenhas, sugere um mosaico demográfico onde pela primeira vez diversas etnias africanas se encontram nos mesmos espaços. Em segundo lugar, a predominância de etnias e grupos linguísticos oriundos da África ocidental e central. Inimigos antigos ou em contacto pela primeira vez, perante aquela condição desumana criam laços e irmandades, e reinventam a cultura africana por toda a América. Encontros que provocaram expressões culturais importantes na culinária, na dança, na religião e na arte.
O desenvolvimento da área de estudos da Diáspora Africana no continente americano estendeu-se à disciplina da História da Arte, fundada pelo afro-americano James Porter, após a publicação do seu livro Modern Negro Art em 1943. Outros dedicaram-se ao estudo da arte africana e sua influência no continente americano. Foi o caso de Robert Farris Thompson, professor de História de Arte na Universidade de Harvard, que pesquisou as expressões artísticas Ioruba e a sua influência do lado ocidental do Atlântico – no Brasil, nas Caraíbas e na América do Norte. Em entrevista, no memorável documentário Sworn to the Drum: a Tribute to Francisco Aguabella (1995) do realizador Les Blank, Thompson relembra um canto cujo percurso pode ser traçado da África ocidental a Cuba e ao longo da costa brasileira, e conta como os cativos Ioruba souberam preservar os seus cultos e espiritualidades disfarçando os seus Orixás de santos católicos para poder continuar a venerá-los em segredo.
As culturas da diáspora africana nasceram em resistência, ganhando expressão em cativeiro quando o encontro forçado de Africanos de diferentes grupos étnicos e linguísticos produziu uma fusão de elementos culturais – incluindo elementos das culturas opressoras – para lutar contra o esquecimento e assegurar a memória e a identidade das suas culturas de origem. A este complexo e longo processo cultural de fusão e reorganização de fragmentos de ideias, religiões e culturas chama-se Sincretismo – um conceito chave para estudiosos das artes e culturas da diáspora africana -, que se desenvolveu transnacionalmente, de norte a sul do continente através de contextos geográficos, históricos e sociais específicos. Memória, Identidade e Sincretismo são assim conceitos chave na trajetória da arte Africana em Diáspora.
Este curso pretende oferecer um panorama da diversidade artística e cultural, em particular nas regiões com maior incidência de comunidades afrodescendentes como o Brasil, Estados Unidos e Caraíbas, no espaço do Atlântico Negro para usar a expressão de um dos mais importantes teoristas da Diáspora Africana, Paul Gilroy. Para o autor, a relação que os africanos escravizados estabeleceram entre si começa na travessia, dentro dos navios negreiros. No Suriname e na Jamaica por exemplo, o termo shipmate significa companheiro de viagem, equivalente a brother e sister. A viagem é o marco identitário fundador, assente numa geografia indefinida, fluída, em constante transformação, onde experiências africanas ocupam outras culturas e territórios.
Com a conquista da liberdade, as experiências de escravidão agregam histórias de rebelião, de espiritualidades e identidades emergentes, bem como apropriações culturais a partir da vivência com o poder colonial. Mas porque a liberdade não trouxe a igualdade, paralelamente aos movimentos modernistas dos séculos XIX e XX, as culturas da diáspora africana explodem em movimentos que exaltam a negritude, o pan-africanismo, e uma nova consciência negra. Um percurso fascinante, impulsionado pelo que Robert Farris Thompson chamou de ‘fulgor de espírito’ de um povo, e que hoje ocupa um lugar de relevo na cultura contemporânea.
Principais regiões de captura e embarque de escravos em África.
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Africa_slave_Regions.svg
Embora este curso incida sobre as culturas da Diáspora Africana no continente americano, no final oferecemos um capítulo extra, em formato E-book, sobre o panorama da presença Africana em Portugal desde o século XV. Uma presença por poucos reconhecida mas que começa a emergir pelo esforço de vários investigadores notáveis nas últimas décadas como é o caso de Isabel Castro Henriques, cujos livros Roteiro Histórico de uma Lisboa Africana, A Presença Africana em Portugal e Mulheres Africanas em Portugal são cedidos gratuitamente pela Secretaria de Estado para a Cidadania e Igualdade ao público em geral.